A liberdade é irmã da privacidade. Princípios conexos, interligados e
que dependem um do outro. Princípios que não admitem distorção. É
claro, que com o advento da Internet e toda a sua interatividade, novos
conceitos, novas ferramentas, novos costumes tendem a renovar a
discussão de tais princípios. E, como não poderia deixar de ser, muitas
destas discussões se relacionam a ciência jurídica. Ciência, que hoje
desafia a sociedade, muito mais dinâmica, rápida, e dependente das novas
tecnologias. São novos costumes, mas com os mesmos princípios éticos e
morais.
O Brasil, com amplo destaque internacional quando o assunto é
Internet, com mais de 70 milhões de internautas, não fica fora, pelo
contrário, conta com um acervo considerável de projetos de lei
relacionados à Web. Um deles, PL n.º 2126/11, conhecido como Marco
Civil, chega ao Congresso com importantes reflexos na legislação
nacional.
Entretanto, apesar de diversos pontos positivos, como a guarda de
registros de conexão (Art. 10), se assim for mantido, trará um risco
enorme a tudo que já foi construído pela jurisprudência.
Vejamos:
- A redação dos Arts. 14 e 15 somente dispõem sobre a responsabilidade
do provedor de conexão à Internet e de aplicações de Internet em razão
de danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros, se intimado, não
atender a ordem judicial (suscetível de reconhecimento de
inconstitucionalidade, inclusive). O artigo é desnecessário, pois:
(i)
havendo uma ordem judicial o provedor deverá cumprir de qualquer forma,
sob pena, possivelmente, de crime de desobediência;
(ii) qualquer
cidadão que sofra um ilícito terá que, obrigatoriamente, buscar o
judiciário, já sobrecarregado, arcando com as custas de um processo,
honorários aos advogados. Tudo isso para retirar um conteúdo ilegal
(pornografia, ofensas, racismo etc), o que hoje acontece
extrajudicialmente (mais ágil, justo, no amparo de nossa farta
jurisprudência, e no mesmo sentido e em consonância com outros países);
(iii) a demora para prolação da ordem judicial poderá causar ainda mais
danos à vítima pois o conteúdo prosseguirá na Internet, exposto ao
mundo. Ainda, o STJ já decidiu pela responsabilidade do provedor no caso
de sua omissão ao não retirar o conteúdo do ar se informado
previamente.
- Pelo art. 16, o provedor terá a obrigação de informar ao usuário,
autor do ilícito, sobre o cumprimento da ordem judicial, o que
possivelmente prejudicará as provas eletrônicas do ilícito praticado,
pois, ciente da investigação, poderá o infrator alterar ou mesmo
eliminar as evidências.
- O Art. 13, §1º, dispõe que o provedor que optar por não guardar os
registros de acesso a aplicações de Internet não poderá ser responsável
por danos de terceiros. Sobre esse assunto, importante ressaltar que
muitas vezes uma investigação sobre um crime de pornografia infantil ou
racismo, para não citar outros, somente é possível através dos referidos
registros de acesso. Na forma que referido artigo 13, para essas
investigações, não seria preservada, a critério do provedor, qualquer
informação anterior ao requerimento pela autoridade competente o que
certamente dificultará ou impossibilitará a punição de infratores em
diversos casos (em razão de não ter sido armazenado qualquer rastro). A
sugestão seria guardar esses registros, com o fornecimento somente
mediante ordem judicial, como no caso da previsão para o fornecimento
dos registros de conexão (art. 10).
O fato é que para quase a totalidade dos atos praticados através ou
contra os meios eletrônicos já há uma legislação específica ou
aplicável, seja em âmbito tributário, trabalhista, penal ou cível, sendo
necessário, em nossa opinião, apenas alguns ajustes, conforme descrição
abaixo:
(i) Guarda, pelos provedores, dos registros de conexão e dos
registros de acesso, inclusive pelos serviços de aplicação (números de
IP, datas e horários GMT) por um prazo mínimo de 01 (um) ano, com o
fornecimento dos dados somente em caso de ordem judicial, seja na esfera
cível ou criminal;
(ii) Obrigatoriedade de preservação de conteúdo pelos provedores,
pelo prazo mínimo de 30 dias, nos casos de notificação extrajudicial de
parte interessada, sendo prorrogáveis por mais 30 dias, também, com
expressa solicitação;
(iii) Possibilitar a interceptação de dados telemáticos e
informáticos também para crimes punidos com pena de detenção se
praticados através ou contra os meios eletrônicos, alterando a Lei
9.296/96, sempre com ordem judicial específica, na forma da citada Lei.
(i) Criar o tipo penal da invasão do domicílio virtual, somente na forma dolosa;
(ii) Criar o tipo penal para a disseminação de códigos maliciosos,
com intuito de causar dano ou obter vantagem indevida, somente na forma
dolosa;
(iii) Aumentar a pena mínima e a pena máxima para os crimes contra a honra praticados pelos meios eletrônicos;
(iv) Da mesma forma, aumentar a pena mínima e a pena máxima para o
crime de concorrência desleal (Art. 195 da Lei 9.279/96), se praticados
através dos meios eletrônicos.
Diante dos comentários anteriores, como anseio comum da sociedade que
deseja liberdade, dentro de nosso Estado Democrático de Direito, mas
também proteção a privacidade, segurança, identificação e punição
daqueles que utilizam as tecnologias para práticas ilícitas,
consideramos que o Marco Regulatório Civil, de acordo com o seu texto
atual, em boa parte, retrocede nossa legislação. Esperamos, pois, que
alterações sejam feitas em nosso congresso evitando os graves riscos
jurídicos ora expostos.